segunda-feira, 14 de março de 2011

Porque ainda não tive tempo de escrevinhar a minha opinião..

Não basta sair à rua é preciso saber para onde

 
por António Rodrigues, Publicado em 14 de Março de 2011  |  Actualizado há 4 horas
O mais difícil parecia ser juntar tanta gente sem o chapéu-de-chuva dos partidos, das jotas ou dos sindicatos. Conseguido isso: soube a pouco


Desci a Avenida da Liberdade com esse ror de gente transbordando-se para os passeios por o alcatrão já não chegar para tantos, muitos na faixa etária dos directamente enrascados, outros das gerações acima ou abaixo - casais com filhos ao colo, avós, mães e filhas e netas, estudantes da faculdade, precários aos milhares, quinhentoseuristas, pares de namorados, muitos piercings e atenção à moda (uma coisa que nada tem a ver ou até tem: a Zara acaba de comprar um espaço na Quinta Avenida em Manhattan por 233 milhões de euros), t-shirts com dizeres, camisolas com folhas de papel escritas (uma trazia dignidade escrita na barriga mas o que se via era o sutiã escuro a marcar a camisola branca), professores habituados ao protesto, um ou outro rosto conhecido das andanças políticas (como o major Tomé, o histórico líder da UDP), algumas, poucas bandeiras de sindicatos, um único partido representado com cartazes (mas como era o dos amigos dos animais e da natureza ninguém levou a mal), os anarquistas e os seus cartazes à procura de serem anarcas a ficarem-se pelo óbvio (não basta escrever car***o em letras garrafais para se acabar com o sistema).

Acho que ninguém imaginaria tamanha mobilização para uma manifestação cuja génese foi uma conversa de quatro amigos sem filiações partidárias que viram nela uma boa ideia e a convocaram pelas redes sociais. É, ao mesmo tempo, um exemplo gritante do poder da internet para espalhar a palavra e um claro aviso sobre o estado de espírito de uma sociedade que sente no peito um aperto de que se quer libertar. Usando uma palavra que chegou a estar muito na moda em tempos mais existencialistas, Portugal parece sofrer de angst - uma angústia, um nó na garganta, uma impotência.

Os franceses inventaram uma expressão para estas situações que, penso, nunca definiu tão bem o estado de espírito de um povo: mal de vivre. A sua definição no The Free Dictionary (http://fr.thefreedictionary.com/mal-vivre) adapta-se que nem uma luva ao que se viu no sábado nas cidades deste país: "Conduzir a uma existência insatisfatória, que é fonte de mal-estar: O mal-vivre dos jovens que não têm trabalho".

Numa faixa lia-se, a letras verdes, "Por um Futuro Melhor", que é esse mal de vivre passado a plano de mobilização capaz de tomar para si a Liberdade (a avenida lisboeta, leia-se): pela primeira vez nas sociedades democráticas, o futuro não está garantido, e o progresso e a ascensão social não são consequência inexorável do esforço de quem estuda ou de quem trabalha. O Estado já não pode garantir nada, a não ser que tentará ir sobrevivendo à espera do milagre da multiplicação dos peixes.

Só que se parece fácil chegar ao diagnóstico, mais difícil é descobrir tratamento - já nem sequer chegar a consenso sobre qual a mezinha a aplicar, o complicado é mesmo perceber para onde se vai a partir daqui; qual o caminho para paisagens mais radiosas. Na manifestação de Lisboa, havia quem pedisse a revolução. Citava-se Victor Hugo: "Em tempo de revolução quem é neutro é impotente"; evocava-se a Revolução Francesa com o seu "Liberdade, Igualdade, Fraternidade", mas foi no Rossio que me confrontei com a imagem da contradição entre os números da manifestação e o seu poder para ser o motor de alguma mudança: "Aqui também há Kadhafi e camelos, só falta a revolução". Era um pequeno cartaz empunhado por um senhor de 50 e muitos, 60 e poucos, camisa cor-de-rosa, sapatos castanhos brilhantes que conversava descontraidamente enquanto mantinha hirto o apelo revolucionário.

E foi aí no Rossio, depois de ter visto gente a registar fotograficamente as várias atracções da marcha como se fosse turista perto de monumento ("ó Zé, aguenta aí que vou aqui tirar uma fotografia"), depois de observar muitos que olhavam para a manifestação como se tivessem arranjado uma alternativa mais interessante à enésima visita ao centro comercial Colombo ou ao passeio dos tristes pela marginal ou pelos caminhos de Sintra; e foi aí, dizia, quando os jovens por trás da convocatória tentaram dizer qualquer coisa e se viram traídos pela falta de som, e a coisa ter sido relativamente salva pelo carro dos Homens da Luta que deram a volta ao Rossio com alguns slogans para a malta responder e sair desse torpor que perpassava por quase todos os rostos ("e agora?") que a mim se me deu para escrever no meu bloco de apontamentos: afinal nada vai sair daqui, é apenas uma oportunidade perdida.

E quase consegui perceber o cartaz mais desconcertante de toda a manifestação de Lisboa, aquele que, por baixo do título "VERGONHA NACIONAL", escrevia pormenorizadamente que "o Sr. Eng. da EDP Fulano de Tal [a identificação estava completa, aqui é que permanecerá omissa] inquilino do r/c com 150 m2 + quintal paga 11,62€ renda/mês x 12: 139,44€ proprietário paga IMI + IRS = 258,59€/ano ESTA É A INJUSTIÇA E A POUCA VERGONHA QUE TEMOS".

A soma das partes nem sempre é igual a um todo. E isso parece ter ficado explícito na manifestação de Lisboa. E ao princípio da noite, viajando de metro com alguns dos jovens que por lá andaram a gritar contra a precariedade, não foram frases políticas, conversas de esperança ou palavras de ordem o que ouvia, apenas a repetição entre risadas do "e o povo, pá" dos Homens da Luta que, por melhores que sejam no seu profissionalismo, não deixam de ser actores que inventaram um número de humor. São personagens, não existem realmente: tal como a revolução que tantos apregoaram Avenida da Liberdade abaixo.

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