segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Manel

Faltavam dois dias para chegar às quarenta semanas. Acabei de remendar um dos chapéus gigantes do bar da piscina de Carvalho e levantei-me para ir escolher capulanas para as cortinas da sala e da cozinha da casa, que ainda estava em obras, mas comecei a sentir uma dor ténue e constante no fundo da barriga por isso disse à minha mãe que me ia deitar um bocadinho. Pelo caminho chamei o Telmo para lhe pedir a chave de casa e segredei-lhe que estava com a tal dor e que, se o voltasse a chamar, era para arrancarmos. Subi o lance de escadas e, à porta de casa, cruzei-me com umas pessoas que iam a passar. Tive a primeira contracção enquanto me perguntavam quando é que o Manel se resolvia a nascer. Agarrada à cerca do alpendre, consegui disfarçar e não desfalecer com aquele misto de sensações debaixo do sol ardente do início de Agosto. Lá me desenvencilhei e entrei em casa directa para a casa-de-banho. Já tinha um fiozinho de sangue. Respirei fundo, fui à janela do quarto e chamei o Telmo com o ar mais descontraído possível, para não panicar ninguém.. Ele largou o cigarro e a mini que estava a beber com o meu pai e com o dele e correu para o andar de cima. Começou a festa!
Disse-lhe para se preparar e ir buscar o carro (onde, claro, já estava a tralha toda mais que pronta) e liguei para o 112.
Rebentaram-me as águas e deitei-me, quietinha, à espera dos bombeiros. Quando dei conta, o meu pai, o meu sogro e a minha cunhada andavam dentro e fora do quarto, feitos baratas tontas, sem saberem o que fazer e eu só tinha vontade de rir. Como voltei a ter mais tarde, às vinte-e-uma horas em ponto.
Às dezoito saí de casa de ambulância, com o Rui a conduzir e a Inês ao meu lado, com contracções de três em três minutos. Que viagem longa.. Parámos na A13 para vir uma ambulância com um enfermeiro ao nosso encontro. Quando o Telmo viu a ambulância a parar na autoestrada, deve ter tido um chelique.. mas estava tudo bem, tirando o calor e as dores, e ainda lhe dei um sorriso forçado. Lá chegou o enfermeiro que nos acompanhou até à maternidade.
Dei entrada às dezanove-e-quarenta e levaram-me logo para a sala de partos. Despi-me a custo e deitei-me de lado para me prepararem para a epidural. A anestesista que entrou disse que não me dava a anestesia por causa da tatuagem nas costas e foi-se embora. Se não estivesse de costas para ela e a morrer de dores, ainda lhe tinha atirado com alguma coisa à testa. Mas não fiz nada senão bufar. Entrou uma segunda anestesista que disse que, com jeito, conseguia anestesiar-me, e avançou.  Se não estivesse de costas para ela e a morrer de dores, ainda lhe tinha dado um beijo na boca. Mas não fiz nada senão bufar. Foram os minutos mais duros da minha vida.. aguentar três contracções com um agulhão espetado nas costas e não me poder mexer. Depois vieram os minutos mais drogados da minha vida.. a primeira contracção pós epidural foi soft, a segunda mais soft ainda e a terceira até soube bem. Tão bem que perguntei à enfermeira, que já era a única pessoa na sala, se podia dormir um bocadinho. Estavam duas mães nas outras salas de parto a gritar que nem loucas, e se era para gritar assim, eu precisava de recuperar forças. E entretanto nada de Telmo..
A enfermeira sorriu e disse-me que podia descansar enquanto levantou o lençol para ver como estava de dilatação. Baixou rapidamente o lençol e começou a chamar a malta. Presumi que o meu sono teria que ficar para depois. Ao entrarem na sala, cada um assumia tarefas e posições. Rapidamente montaram umas pegas gigantes na cama para que eu pudesse puxar como se estivesse a remar. E nada de Telmo.. - Faça força, faça força!!!
O Telmo, que tinha estado sentado do lado de fora com mais um pai, às tantas viu um aviso a dizer que não se podia entrar na sala de chinelos. Com receio de não o deixarem entrar, desceu de elevador, calçou uns ténis (ele chama-lhes sapatilhas) que tinha no carro e voltou a tocar à campainha para aceder à zona de partos. Como estava tudo ocupado com duas a berrar e eu a começar a parir, teve que esperar algum tempo até lhe destrancarem o acesso. Assim que saiu do elevador, tinha uma auxiliar com uma bata na mão a mandá-lo correr porque o Manel já estava a nascer.
Eram precisamente vinte-e-uma horas quando sorri ao ver a cara dele a entrar na sala de partos, de frente para o Manel, que já estava com a cabeça de fora e escolheu aquele preciso momento para soltar o resto do corpo de dentro de mim. Coitado, que belo cenário!
Apressou-se a vir para o meu lado, de onde não conseguia ver o espectáculo mesmo de frente.. o Manel chegou com o cordão umbilical à volta do pescoço e meio engasgado, por isso foi espremido e logo levado para a sala de apoio, onde o limparam e vestiram. Só o vi quando o Telmo o trouxe já arranjadinho, muito branco e com os lábios muito vermelhos. Na altura pareceu-me lindo de morrer, agora, vendo as fotos, nem tanto!
Mamou ainda na sala de partos e lá seguimos sobre rodas para o quarto com o pai ao lado. Acho que o transe me tolda um pouco a memória a partir daqui e durante alguns dias. Estava a viver a maior felicidade da minha vida mas muito cansada e esfomeada. Antes que a enfermeira que nos acompanhou se fosse embora, disse-lhe que não comia desde as duas da tarde e estava com muita fome. Respondeu-me que àquela hora (vinte-e-duas e trinta) já só tinham pacotes de leite e bolachas.. Mas era impossível eu recuperar de um parto com leite e bolachinhas!!! A única solução era o pai ir a qualquer lado comprar comida, por isso foi ao McDonald's e trouxe um Big Mac para cada um, que comemos em cima da cama em jeito de piquenique enquanto o Manel dormitava cá fora pela primeira vez. 

E hoje.. hoje faz um ano!