quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Destralhar

Curiosamente hoje descobri escrita na net a palavra Destralhar. Nunca tinha pensado nela, eu que gosto tanto de palavras.
Faz seis anos que iniciei o processo de destralhar a minha vida. Uma luta de várias frentes que teve como ponto de viragem o momento em que, ao tirar a roupa de inverno do armário para fazer a mala para viajar para Berlim (onde nevava enquanto em Portugal ainda fazia sol), consegui construir uma montanha de trapos em cima da cama que quase chegava ao tecto. E a de verão continuava pendurada nos armários.
Pensei com os meus (muitos) botões que um só corpo não precisava de tanto adereço. O facto de ter iniciado pouco tempo antes a minha formação nos Bombeiros, e de me ter apercebido quanta miséria humana existia tão perto da minha casa, também teve bastante peso. E foi o ponto final para o verbo comprar.
Comecei por ir descartando o que já há muito não vestia ou calçava.
Seis meses mais tarde aterrei em Moçambique com duas malas que perfaziam trinta quilogramas e uma semana depois percebi que metade das coisas que tinha levado não me iriam fazer falta. Os quatro meses no Chibuto foram fundamentais para me fazer perceber que estava a tomar o caminho certo e fizeram ainda força para que, além dos trapos, me destralhasse também de assuntos pendentes e de pessoas. Batalhas duras que trouxeram inúmeras vantagens na minha vida, no meu dia-a-dia.
A viver em Maputo, com todos os constrangimentos de acesso a bens e quilos contados nas malas de viagem, aprendi que também é possível viver com duas mudas de roupa de cama, duas toalhas de mesa, dois toalhões de banho, e por aí em diante. Dois para um é uma óptima conta.
As circunstâncias da minha vida por esses anos ajudaram, sem dúvida, nesta consciencialização e na coragem para dar passos. Para ajudar à festa, deixei de frequentar centros comerciais e cancelei todas as subscrições de newsletters publicitárias. Não há milagres..
Mas desde então tenho de ouvir a minha mãe cada vez que dou roupa (Como raio é possível ainda ter roupa para dar?!?) e em todas as mudanças de estação me dói a cabeça só de pensar em ter que me enfiar num shopping porque acho sempre que é desta que o que tenho não vai chegar. Mas tenho achado isso desde que voltei para Portugal, em 2015, e a verdade é que tem sempre chegado.
Tenho cinco pares de botas (contando com as galochas cor-de-rosa), outros tantos de ténis, alguns chinelos e alguns sapatos mais formais. A roupa nem conto porque, mesmo tendo uma quinta parte do que tinha há seis anos, tenho ainda a mais.
Para além de gastar o dinheiro em coisas mais úteis, tenho mais (muito mais) espaço nos armários e perco menos (muito menos) tempo a escolher o que vestir.
E a luta vai seguindo passo a passo nas novas casas, nos novos trabalhos e nas amizades.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Mais uma casa em mim

Às tantas não sei onde estou. Qual de mim sou. Misturam-se-me os momentos, as lágrimas, as gargalhadas, os sufocos e os êxtases. As decisões, as loucuras, as perdas e as vitórias. Tenho até pedaços de outros, de sítios e de culturas. Tenho frios e afrontamentos. Tenho quase trinta e cinco anos de mim e nem todas as manhãs me reconheço. Continuo com fome da vida, com fome de mim. Mais um baralho de cartas, novos trunfos e loucas manilhas. Mais um passo.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

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Abraça-me.
Aperta tudo o que sou contra o teu peito torneado.
Espera que me escorram os medos para que restemos só nós, só a loucura, que devolve tantos sonhos.
Abraça-me.





sábado, 18 de fevereiro de 2017

Hoje há festa na aldeia

E hoje tenho saudades tuas, avô. Talvez por te ter perdido à distância, te tenha arrumado mais facilmente no coração. Talvez por nos termos despedido consciente e atempadamente tenha sido mais serena a perda. Todos os dias te lembro e falo de ti mas não posso dizer que é saudade, é outra coisa que não sei dizer. Talvez não saiba nem pensar. Mas hoje são mesmo saudades que sinto. Hoje gostava que voltasses a olhar para mim. Que descesse a escada e te encontrasse a engraxar-me as botas da farda à lareira porque me adoravas ver ataviada. Hoje só tenho saudades tuas, avô.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Outros futebóis

Desde 2010 que tenho uma relação de amor/ódio com o futebol. Nesse ano ouvi um adepto do meu clube dizer, com o filho pequeno pela mão, que podia ir preso mas que nesse dia ia matar um adepto do Atlético devido aos confrontos que tinham acontecido em Madrid na primeira mão. Nunca foi este o meu futebol. Sou sócia do Sporting desde 1982 e cedo comecei a ir ver treinos e jogos, de mão dada com o meu avô, que nas manhãs de fim-de-semana gostava de ir ver as equipas mais novas e as equipas femininas. Fiz trezentos quilómetros com uma directa em cima para ver o jogo de abertura do Europeu em 2004, estive cento e cinco minutos debaixo de chuva intensa a ver um amigável Portugal-Brasil (primeiro jogo do Deco pela nossa selecção), chorei em Alvalade nos 1-3 com o CSKA sem dizer asneiras porque tinha o meu tio ao lado, vi o último jogo no estádio antigo. Já fui à Luz, às Antas, ao Braga e ao Algarve. Mas naquele dia, em 2010, disse para mim mesma que não podia gostar de um desporto que leva as pessoas a tamanha violência, que afasta amigos e que move um país sem olhar a meios. Principalmente financeiros.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Liga de Melhoramentos de Carvalho

Ontem fez 74 anos a Liga de Melhoramentos da aldeia mais bonita do Mundo. E por conversas sobre o tema, dizia eu ontem, que me faz confusão quando algum amigo de Lisboa diz que não tem terra. 'Os meus pais são de Lisboa, os meus avós são de Lisboa..'

Que raio é ter uma infância sem terra?
E os banhos no poço, os pic-nics com os primos, dançar o vira, enrolar rifas até nos doer os dedos, o medo da Galinha, fumar o primeiro cigarro, andar quatro quilómetros à noite para beber café no Carvoeiro e depois mais quatro para voltar, dançar o vira outra vez, cantar pela aldeia na Páscoa com a boca a transbordar de amêndoas, servir cem cafés em cinco minutos no bar depois do almoço da festa, ver os tios e os avôs a torrarem a nota no leilão e as tias e as avós a ficarem fulas, pedir um fado, ver a piscina pela primeira vez, ir à Vila ligar aos pais porque em Carvalho não havia telefones, comprar autocolantes dos Bombeiros, vender autocolantes de Carvalho, ser enfiada na piscina toda vestida, leiloar tufos do cabelo do Gustavo (rapado ao vivo!), e mais outro vira, enfiar os pés na ribeira gelada, ir sentada na bicicleta dos mais velhos que pedalavam até Pessegueiro, tomar banho na fonte da eira fundeira, passar a placa da aldeia dois metros e ficar ali o serão só para transgredir a regra que nos impedia de sair da aldeia e, no fim do verão, as pernas forradas a pensos rápidos?

Coitados.. não tiveram infância..




quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Dar sangue não é nada nice..

Ontem perguntaram-me: como é que a Maria Desmaios aguenta?
Ora pois.. a primeira vez que dei sangue, em 2002 no Curry Cabral, não foi nada simpático. A minha curiosidade parva fez-me tirar os olhos da televisão e olhar para o saco do sangue. Tudo porque estava a ouvir um toc toc e tinha a certeza que era de alguma coisa que me estava ligada às veias. Tinha razão. Olhei para o raio do saco, que estava a dançar numa espécie de balança e a fazer o toc toc.  Felizmente passou uma enfermeira, olhou para o meu melhor ar transparente e arrancou-me aquilo tudo do braço. Quando dei por mim estava numa salinha a comer a sandes de presunto que melhor me soube em toda a vida. A partir desse dia, quando ia dar sangue, mais ou menos de quatro em quatro meses, não tirava os olhos da televisão, não falava com ninguém, não mexia no telefone, só respirava. Eram só uns dez minutinhos e sabia que a seguir ia ter uma heroína sandes de presunto que me reporia toda a energia.
Mais tarde veio o IPO. Por motivos óbvios alguém me convenceu em 2009 a passar as dádivas para lá com a promessa de que era possível entrar no edifício e chegar à sala de dadores sem ver pessoas doentes. Porque para isso é preciso mais coragem, mais estômago, muito mais pressão arterial e rolhas nos olhos. Eu nem sequer choro com as voluntárias que vão à sala tocar e cantar, imaginem com doentes..
Em 2012, enquanto preenchia o velho questionário que queria saber se o nosso sangue era gay, vi um cartaz a explicar as dádivas por aférese. "Esta técnica especial permite que o seu sangue seja retirado através de um braço e passe por uma centrífuga especial através de uma sistema de tubos esterilizados. Uma parte das suas plaquetas, ou uma combinação de plaquetas e outro componente, são removidas, enquanto os restantes componentes do seu sangue lhe são devolvidos através do mesmo braço. Este processo dura entre 45 a 90 minutos."
Para além de uma dádiva desta natureza equivaler a seis dádivas normais, pode ser feita de dois em dois meses (nas normais as mulheres só podem doar de quatro e quatro meses).
Como estava acompanhada por uma Santa Amiga Enfermeira (que só foi dar apoio moral porque não tem 50kg e não pode doar sangue) enchi-me de coragem e lá fui.
Fizeram umas análises e constataram que tinha bons acessos e muito bons valores. Conclusão, podia fazer uma dádiva dupla! Estava no segundo andar, que da janela cá para baixo equivale a um quarto e já estava ligada à máquina, por isso não tive grande alternativa.

Foi bom? Não! E agora já é? Nada!
Nunca estou menos de 75 minutos a ver o sangue a sair (altura de apertar a bola), andar às voltas na maquineta, e voltar a entrar cá para dentro. Tenho sempre de tomar cálcio porque fico com a boca e os pés dormentes e café porque a pressão arterial desce (ontem foi aos 90/35), e no fim pareço um espantalho porque 75 minutos de corpo hirto e a agulha das farturas enfiada no braço não dão a ninguém um andar sexy.
Enfim, imagino-me em Monkey Bay, Malásia, a beber água de côco ou caipirinhas. E se me perguntam se é preciso coragem eu respondo que sim, mas também já saltei de avião duas vezes, já fiz duas ou três endoscopias sem anestesia e até já fiz snorkeling na tal da Monkey Bay, que felizmente só durou trinta segundos até decidir que estava muito melhor na toalha a ler.

Não é bom mas vale a pena! E, tanto quanto sei, não sou nada persuasiva.. já falei da dádiva de aférese milhentas vezes com diversas pessoas e nunca consegui convencer ninguém a ir comigo.
É mais fácil fazer partilhas no facebook de crianças carecas e pedir aos outros para se inscreverem como dadores de medula, ou a fazerem likes. Ou a escrever um Amén.