terça-feira, 7 de fevereiro de 2012
Eu também continuo contra o Acordo
Antiga Ortografia
Fulano escreve “de acordo com a antiga ortografia”, diz o aviso que acompanha estas crónicas. Eu agradeço que o “Expresso” me permita a objecção de consciência face ao chamado Acordo Ortográfico, e percebo que indique quem segue ou não as novas regras, para evitar confusões; mas suspeito que esta fórmula foi inventada por alguém que pretende colar aos dissidentes o vocábulo “antiga”, como se nós escrevêssemos em galaico-português. Como se a língua que a maioria dos portugueses ainda usa se tornasse por simples decreto “antiga”: antiquada, decrépita, morta.
Eu não sou pela “antiga ortografia” por caturrice. Estou contra o “acordo” porque me parece uma decisão meramente política e económica, sem verdadeiro fundamento cultural. Os legisladores impuseram aos falantes uma “ortografia unificada”, que, dizem, garante a “expansão da língua” e o seu “prestígio internacional”. Mas a expansão da língua passa por uma política da língua, que Portugal, por exemplo, não tem tido, ocupados que estamos em fechar leitorados no estrangeiro, em aplicar uma abominável terminologia linguística nas escolas, em publicar um lamentável Dicionário da Academia, em expulsar Camilo dos currículos enquanto o substituímos por diálogos das novelas. Quanto ao prestígio internacional, lamento informar que foi o sucesso económico, e não a “língua de Camões”, que transformou o Brasil numa potência.
Não é este “acordo” que vai trazer expansão e prestígio ao português. Contenta uns “acadêmicos espertos e parlamentares obtusos”, como escreveu um colunista brasileiro, e alguns editores, que têm bom dinheiro a ganhar com esta negociata. Mas é difícil imaginar que alguém acredite que vem aí uma “unificação da língua” só porque se legislou uma “unificação da grafia”. Um brasileiro continuará a falar uma língua muitíssimo diferente do português de Portugal, diferente em termos de léxico, de sintaxe, de fonética. Um português, com um exemplar do Acordo debaixo do braço, bem pode perorar em Iraguaçu, que alguém lhe continuará a perguntar “oi?”, pois não percebeu metade. E isso não tem problema algum, a “lusofonia” não vale pela unidade mas pela diversidade, pelo facto de haver um português europeu, africano, americano e asiático. E ninguém é dono da língua: nem os brasileiros por serem mais, nem os portugueses por andarem cá há mais tempo, muito menos uns académicos pascácios que dicionarizaram “bué” e “guterrismo”.
É significativo que o próprio “acordo” reconheça o fracasso do projecto de “unificação a língua”. Dadas as flagrantes diferenças entre o português e o brasileiro, os sábios são obrigados a admitir a existência de duplas grafias, uma cá, outra lá [África, para estes iluministas, é paisagem]. Pior ainda, introduzem uma “grafia facultativa” que estabelece como termos lícitos tanto “electrónica” como “eletrónica”, “electrônica” ou “eletrónica”. O linguista António Emiliano deu-se ao trabalho de enumerar em livro os erros, contradições, imprecisões e dislates desta lei iníqua. Leiam-no. E não digam que ninguém avisou.
A minha recusa deste “acordo” não é casuísta nem temperamental. Não se trata apenas de não gostar de ver os espectadores transformados em bandarilheiros “espetadores”; de não perceber como é que os habitantes do “Egito” não são “egícios”; de ficar estupefacto com o “cor-de-rosa” com hífen e o “cor de laranja” sem hífen; de prever os imparáveis espalhanços de um “pára” do verbo “parar” que perde o acento e talvez o assento. É isso mas é mais que isso: eu discordo veementemente do critério fundamental do “acordo”: a primazia da fonética sobre a ortografia.
É verdade que todos falamos antes de sabermos ler e escrever, mas quando aprendemos essas competências sofisticadas interiorizamos uma língua diferente da falada, que nalguns casos nem tem exacta correspondência fonética mas que se liga a uma memória histórica e cultural. Quando aprendemos a ler, fixamos a forma gráfica das palavras, uma forma que memorizamos e que nos acompanha a vida toda, de modo que nunca mais lemos letra a letra, mas reconhecemos de imediato uma grafia aprendida há muito, “antiga”, sim, muito antiga. A ortografia não é uma transcrição fonética, nem podia ser, dadas as variantes do português falado. Ou nas pronúncias regionais. Como escreveu Emiliano, não vamos criar uma “ortografia do Alto Minho” só porque a pronúncia de Caminha é diferente da pronúncia de Cascais. Ou de Curitiba.
E não me digam que são pouquíssimas as palavras alteradas: procure quantas vezes neste jornal aparece ação, ator, atual, coleção, coletivo, diretor, fato, letivo, ótimo, e repare que são algumas das mais usadas. É por isso que o cavalo de Tróia das “consoantes mudas” deve ser denunciado. Em primeiro lugar porque não são mudas coisíssima nenhuma: abrem as vogais precedentes, e numa língua danada por fechar vogais. Depois, porque não são inúteis, ajudam a distinguir termos homógrafos e indicam a etimologia de palavras afins. Fazem sentido, ao contrário do “acordo”.
Dizem os acordistas que a nova ortografia “simplifica” e “facilita a aprendizagem”. Toda a gente sabe o que significa “facilitar a aprendizagem”, e os resultados que isso deu no ensino. E se a intenção é “simplificar”, que tal escrevermos todos em linguagem de telemóvel? Por mim, continuarei antigo.
Artigo da autoria de Pedro Mexia publicado na edição de 14.01.12., no jornal Expresso.
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